11/05/2015

Uma Praça em Antuérpia, Luize Valente

"Tita escutava fascinada a história da avó. Aquela senhora tão austera, decidida, por tantas vezes taxada como fria e calculista, era a capa de uma mulher movida pela paixão."


Romance histórico. Segunda Guerra Mundial. Europa. Clarice e Olívia. Irmãs gêmeas.

E isso é tudo o que você precisaria saber para começar a leitura deste romance, pois é interessante que o leitor conheça pouco sobre a sinopse e a história, a fim de descobrir as nuances à medida que a narração apresenta os fatos e degustar melhor as provocações que a autora desperta.

Uma Praça em Antuérpia tem seu prólogo no ano de 2000, em que, já idosa e após a perda recente do filho, uma das irmãs conta sua história para a neta, Tita, que também perdeu um filho (que não chegara a nascer).
A história quanto mais contada, mais atraente fica e os capítulos, em geral curtos, abrangem o nascimento (em Portugal), a infância e toda a vida das gêmeas Clarice e Olivia, iniciada aqui no turbulento século XX, em meio à Grande Guerra. O livro é dividido em 5 partes: inicia-se em "Olivia e Clarice" e termina em "Mariano".

Uma passagem de destaque, logo no início, é o nascimento das meninas. Ocorre algo inesperado e incrivelmente tocante, além de triste, narrado com delicadeza e frieza tamanhas que tentar caracteriza-lo seria imprudência. Atente a este capítulo 2.

As dificuldades ao redor do mundo afetam diretamente os personagens. A década de 30, especialmente, é impetuosa, na qual movimentos totalitários e a instabilidade mundial apenas sugeriam mais uma guerra. Em meio a isso, a família das gêmeas é consequentemente afetada pelos problemas econômicos - e pelo medo.
Em um dado momento, uma das gêmeas se envolve com um pianista, judeu de nascimento, comunista, que viveu na Alemanha, e o narrador consegue apresentar os temores de toda a população judia neste personagem, que se vê na obrigação de manter contato com uma família ligada ao partido nazista, dentre outras experiências mais perigosas. Este é um personagem extremamente notável, pois o encadeamento de sua história em especial, devido ao envolvimento mais direto com os extremos, merece atenção.

É possível perceber a intimidade de Luize Valente com a escrita e, me permito dizer, com sua técnica, que revela informações importantes já no início da leitura. A autora cita organizações como Schutzstafell, SD, Gestapo, deixa o leitor com informações pertinentes à época, as contextualiza, chega a apresentar pontos do gosto musical de Hitler. Pode parecer óbvio para um romance histórico, mas quando há a falta de tais características, a história fica pobre, e a riqueza de detalhes só faz maior a imersão à obra.

"Antuérpia", cidade situada na Bélgica, significa "mão arremessada", como o narrador explica a certa altura do texto. A palavra teve origem em uma historia de Davi e Golias, em que um gigante cobrava pedágio para os viajantes que queriam atravessar o rio Escalda. Os que se recusavam a pagar, tinham a mão cortada e arremessada ao rio. Na história, a cidade conta com uma comunidade judaica e possui delicada relação com o título.

Durante a Segunda Guerra Mundial, a Europa é tão pormenorizada quanto o possível e os acontecimentos são sempre interligados, não ficam "flutuantes" ou compreensíveis apenas para quem entende de História. Principais grupos rebeldes, chefes (e suas posições frente à guerra e ao Nazismo), bombardeios, rotas dos fugitivos, alianças... Não sei até que ponto o romance de Luize Valente é fidedigno, mas as descrições instigam os apreciadores do assunto a buscarem por mais informações.

Pense na possibilidade de o romance funcionar em outro "universo". Fiz o mesmo e cheguei à conclusão de que, se ambientado de forma diferente, a história de amor e a do desencontro das irmãs pudessem ficar pouco consistentes: o cenário da guerra dá um realce significativo à obra, narrada em terceira pessoa.

Várias referências são feitas, é interessante também procurar por elas, como as referências musicais, as de linguagem (são utilizados termos e expressões da cultura judaica (Iídiche)) ou ainda menção a outros livros*.

Uma Praça em Antuérpia surpreende o leitor e, como bom exemplo da literatura nacional, entra para a lista de romances históricos bem escritos, com episódios de ataque repletos de tensão. Luize, por sua vez, fez todo o roteiro de seus personagens, para que as descrições ficassem mais próximas à realidade, e o resultado é um registro a partir de fatos entrelaçados com a ficção e que não perdem a beleza, ainda que tristes.

*Dentre as referências citadas, as que mais me chamaram atenção foram:
A palavra "bashert", que significa alma gêmea; o termo "rocambolesco", que refere-se ao personagem Rocambole, da reunião dos folhetins As Aventuras de Rocambole (Ponson du Terrail).

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