31/12/2016

A Festa de Aniversário + O Monta-Cargas - Harold Pinter

"MCCANN: Quem é você, Webber?
 GOLDBERG: Por que você ainda pensa que existe?
 MCCANN: Você está morto.
 GOLDBERG: Você está morto. Você não pode viver, não pode pensar, não pode amar. Você está morto. Você é uma peste que se alastrou. Não tem mais substância. Você não passa de um mau cheiro."

Harold Pinter foi o dramaturgo inglês vencedor do Nobel de Literatura de 2005. Ainda na década de 1960, escreveu peças de teatro expressivas e impactantes e duas delas, A Festa de Aniversário e O Monta-cargas, foram publicadas em 2016 pela editora José Olympio.

Em A Festa de Aniversário, que ocupa boa parte do livro, estamos em uma pensão. Os proprietários são Meg e Petey, que tem apenas um hóspede, Stanley. A relação entre eles é estranha, beira o bizarro, em alguns momentos, parece haver falta de entrosamento completa, em outros, temos a sensação de que alguém está louco. O cenário principal é a cozinha, logo, sabemos apenas o que se passa lá. Em uma manhã comum, Petey dá a notícia de que receberão novos hóspedes, dois rapazes que ficarão na pensão sabe-se lá quanto tempo. Ao chegarem, os rapazes ficam sabendo que Stanley fará aniversário e todos preparam uma festa em que situações inusitadas acontecem, violentas (ou não).

Já em O Monta-cargas,  Harold nos leva a um "intervalo de trabalho". Dois aparentes criminosos, Gus e Ben, estão em um quarto de  porão aguardando instruções de seu chefe para a próxima missão. Nesse contexto repleto de diálogos rápidos e corriqueiros se entremeando a temas inquietantes, um monta-cargas (aquele "elevador" que transporta mercadorias de um andar ao outro) se movimenta e leva um pedido, aparentemente de uma lanchonete.

Para o leitor que procura uma leitura com início, meio e fim delimitados, com acontecimentos concretos, talvez seja melhor mudar a expectativa (mas leia assim mesmo!): o estilo do autor é único. Além da sugestão da violência no texto, o que dá caráter a Pinter é a falta de informações, a insinuação, são histórias que deixam à mostra vários sentimentos (não tão positivos). No prefácio da presente edição, é contado que uma leitora enviou uma carta muito malcriada ao autor, dizendo que o que Harold fez não foi um texto coerente.

Na Inglaterra, as peças de Harold Pinter tiveram várias encenações, inclusive para a televisão. No Brasil, algumas representações foram feitas no passado e a obra influenciou muitos artistas. O principal seguidor não-assumido é o diretor de cinema Quentin Tarantino. Os personagens clássicos do filme Pulp Fiction (1994), representados por Samuel L. Jackson e John Travolta, remetem muito aos moldes de Pinter. Muito mesmo.

Última leitura de 2016, A Festa de Aniversário + O Monta-cargas já entrou para a lista dos melhores livros e dos mais ágeis. Apesar de sempre gostar de peças de teatro, essas duas mostraram um tipo de literatura desconhecida por mim até então, com acidez e malícia próprias. Recomendo aos que gostam de teatro, aos que não gostam, aos que gostam de Tarantino, aos que tampouco gostam de ler, principalmente por toda a explicação do enredo se basear em uma expressão: "E se?".

04/12/2016

Carteiro Imaterial - Marco Lucchesi

"Nesses últimos anos houve uma devastadora epidemia de vampiros, que assolou nosso mercado editorial. Monstros aparentados com Drácula ou com a brigada de diabos dantescos, sob os raios canônicos da lua, com seus caninos não menos clássicos e afiados. Podemos tomar tranquilamente um bom café na companhia do conde romeno e suas variedades: um sem-número de figuras, todas ligadas a Drácula e ao vistoso príncipe do mal."

Quando li a sinopse de Carteiro Imaterial, de Marco Lucchesi, e comecei a ler, achei que fosse semelhante a Uns Brasileiros, de Mario Prata, porém, este se dedica exclusivamente a entrevistas fictícias com personalidades diversas, enquanto Lucchesi pode se direcionar a alguém em especial, simulando o envio de uma carta, ou a algum leitor (de preferência, o ideal) que se depare com seus escritos.

A publicação contém ensaios acerca de vários temas, como o idioma, as traduções, fundamentalismo religioso, em meio a indicações de livros, discussões metafísicas, o manejo das letras, das artes e seus legados. Os ensaios são divididos em seções: Carteiro Imaterial, Poetas Romenos, Rastreamento, Maltraçadas Linhas, Posta-restante, Caixa-postal e Endereço Desconhecido.

Sobre o leitor ideal, ao iniciar o livro, pode-se ler o "Aviso de entrega". Carteiro Imaterial é uma obra de alto teor intelectual e, talvez por isso, nessa parte, há o aviso do leitor idealizado. O autor compreende que é necessário estar aberto aos ensaios para uma leitura imersiva. Ao meu ver, para que o leitor adentre às palavras de Lucchesi, é essencial um conhecimento prévio sobre literatura, história mundial e brasileira, mas, caso não haja (como experiência própria), uma busca rápida sobre o desconhecido é sugerida.

Um dos meus textos favoritos da edição é o "Kerido Evanildo Bechara". O escritor brinca com as palavras e apresenta uma carta ao referido gramático. O resultado é um texto divertidíssimo e, como o próprio autor classifica, selvagem. Não há acentos, ou regras para consoantes com mesma fonética, dígrafos, hífen, etc. Outros que se destacaram durante a leitura foram "Mincu: diário de Drácula", em que discorre sobre a ascenção dos vampiros literários e faz a sugestão do livro que o título traz; e "Fausto no Brasil", que compara o papel do tradutor a Mefistófeles, incluindo partituras musicais e citações do próprio Goethe para apoiar suas teorias.

Lucchesi propõe um texto com linguagem muito rica, o que torna a experiência diferenciada. O autor, além de escritor, também é tradutor, professor, membro da Academia Brasileira de Letras e detentor de vários prêmios, incluindo o Jabuti.

O lançamento da José Olympio é um desafio e um deleite para os que gostam de opiniões bem formadas e embasadas. Visualmente, é um belo livro, com uma bela diagramação. Todavia, o conteúdo apresentados por Marco é o que mais se destaca, e torna essa uma das melhores reuniões de ensaios de 2016.

"E se a presença eslava empresta ricos matizes aos substratos da língua romena, permitindo-lhe saídas semânticas delicadas de que se beneficiam os poetas, assim também a língua portuguesa realiza um diálogo permanente com a herança árabe, de que destaco, entre outros, os artigos ligados aos substantivos que nos permitem dizer ruído ou arruído, corão ou alcorão."

09/11/2016

Doadores de Sono - Karen Russell

Em Doadores de Sono, a mais nova epidemia constatada nos EUA é a insônia.  O livro é ambientado alguns anos após os primeiros casos da doença, quando já existem "bancos de sono" e doadores (como o título indica). Trish é uma das profissionais do Corpo do Sono, instituição liderada pelos irmãos Storch que coleta sono límpido e transfere aos insones (também chamados de orexinas). O trabalho da moça é atrair novos doadores e mostrar que o processo é seguro e, para isso, ela usa história da morte da irmã para alcançar a sensibilidade da população (sem aparente charlatanismo). Duas importantes peças do enredo são: a Bebê A, que possui padrão de sono REM tão límpido, que é considerada doadora universal, juntamente com o dilema dos pais em ofertar ou não os sonhos de uma criança tão pequena; e o Doador Q, doador anônimo portador de um terrível pesadelo que incita os receptores a não dormirem mais.



  • Características narrativas
A primeira metade do livro é  substancialmente descritiva/informativa. Não sabemos nada sobre a nova doença, dessa forma, a autora apresenta as variáveis, os dados estatísticos e tudo o que Trish sabe sobre o tema, incluindo sua experiência com a falecida irmã.
  • Similaridade à uma epidemia
A história é inovadora por relacionar a perda da capacidade de dormir a uma epidemia. Por vezes, lembramos de casos verídicos de doenças infectocontagiosas. Fãs do filme Contágio (Contagion, 2011) certamente irão gostar dessa ficção.
  • Características do sono
Karen utiliza referências autênticas (e científicas) sobre  o sono, como a diferença entre sono profundo (REM) e sono leve (não REM), mesclando-as com suas próprias para se adequar à obra. Quanto à epidemia, Karen usa termos epidemiológicos recorrentes da área.
  • Submundo da Insônia
Como toda epidemia não contida, há a comercialização do bem-estar e a alta do mercado negro, como venda de substâncias clandestinas para induzir o sono. Há um ambiente específico para isso, uma espécie de submundo, em que a autora usa toques da psicodelia para descrevê-lo.
  • Manipulação do terror
Nem todas as informações são divulgadas, a fim de evitar o pânico generalizado. Em contrapartida, quando notícias "vazam", determinados setores induzem a população ao temor por situações específicas, e Karen Russell demonstra bem isso.
  • O estilo de Karen Russell
Karen escreve em primeira pessoa sobre uma situação futurista, que oferece questionamento ao leitor (e se acontecer?). Por vezes o drama inserido soa mecânico, mas sua ideia é concreta, ao passo que, para desenvolvê-la, a escritora é delicada, tem a abordagem dócil ao apontar o problema exposto.

  • Referências
Doadores de Sono é um livro curto, porém, cheio de referências. Não apenas aos termos usados na saúde, mas aos clássicos da ficção científica (A família da Bebê A, por exemplo, sustenta o sobrenome Harkonnen - Duna), dentre várias referências.

25/09/2016

O Vento da Noite - Emily Brontë

"E onde, sozinhos nos montes e cobertos pelos gelos,
Os que eu amei outrora
Jazem.
E tenho o coração sufocado por um morno desespero;
Em vão me consumo em murmúrios e queixas,
Pois sei que nunca mais voltarei a vê-los!"


Emily Brontë também escrevia poesias. E brilhantemente. A autora viu poucos de seus versos publicados em vida, já que a maioria foi organizada postumamente por uma de suas talentosas irmãs. 
Influenciada por sombra e névoa, Brontë escreveu sobre temas pesados (em verso e prosa) e, nesse livro em especial, concedeu seu toque gracioso e impactante ao infortúnio que a angustiava.

A primeira edição de O Vento da Noite chegou ao Brasil na década de 1940, trazida pela José Olympio e traduzida por Lúcio Cardoso. Também contava com os 33 poemas, além da capa dura. Nesta edição de 2016, pela Civilização Brasileira, a versão é bilíngue, em brochura apenas, possui algumas considerações do organizador e uma breve nota de Lúcio Cardoso (contida em ambas as versões).



Em seus versos, Emily segue, quase sempre, a estrutura de 4 linhas por estrofe, entretanto, blocos maiores podem ser observados, vez ou outra. A autora dá uma alma feminina às poesias (opinião minha aqui), apresentadas na versão original. Já Lúcio Cardoso faz modificações, insere títulos, nem sempre segue métrica, rima, ou palavras ao pé da letra, talvez influenciado pelo Modernismo, ao passo que traduzia o período Romântico. As palavras de Emily podem soar contidas se comparadas às de Lúcio.

A Civilização Brasileira tem reeditado obras que Lúcio traduziu, como Drácula e Orgulho e Preconceito. É frisado na contracapa, na orelha do livro, nas notas do organizador, na sinopse e em todo lugar, o brilhantismo do brasileiro - que chegou a completar 16 traduções no período de 10 anos - e o cuidado com seu material.

O tradutor, que também tem produções autorais, se destaca na reprodução da obra no idioma Português, contudo, o fato de a edição ser bilíngue aprimora a experiência do contato direto com Emily Brontë. Por fim, em uma leitura rápida e prazerosa, é possível entrar no mundo "noturno" da autora e enfrentar o sofrimento de poucos anos de vida imortalizado em poesia.