02/07/2015

O Tom Ausente de Azul, Jennie Erdal

"Quando consegui me convencer a deixar de olhar as portas, fiz o que muitas vezes faço em lugares públicos: usei meus olhos como a lente de uma câmera, registrando imagens em ângulos amplos da multidão antes de focalizar um rosto específico, segurando a visão por tempo bastante para procurar pista quanto à vida por trás dele e reforçando minha teoria de que todo mundo está escapando de algo: um casamento, um segredo de família, um passado criminoso."



Jennie Erdal é uma autora escocesa, que também já foi tradutora e editora.
O protagonista do romance, Edgar Logan, é um tradutor que narra os acontecimentos de quando saiu da França, seu país natal, para traduzir a obra do filósofo escocês David Hume a partir dos escritos originais, em Edimburgo. Edgar relembra como conheceu Harry e Carrie Sanderson e os efeitos do convívio com o casal sobre si mesmo, a infância e amadurecimento na livraria dos pais, já falecidos, dentre outras experiências não menos importantes. Por estar imerso na Filosofia, ele analisa os fatos de sua vida e as pessoas que o rodeiam.

Já no prólogo (com citações de Hume e Roethke) é possível notar que o romance será repleto de referências, que partem da própria doutrina filosófica, passam pela psicologia e chegam aos filmes. Questões filosóficas são o tema principal e, talvez, por se tratar deste tema, o romance dá a impressão de que terá uma linguagem polida e difícil, mas é leve e acessível apesar da densidade inerente ao assunto. Tem a natureza despretensiosa, sem a seriedade usual, entretanto o andamento é lento.

O livro não tem exatamente uma cadência, ele fala de acontecimentos cotidianos, depois relata memórias/traumas, reflete sobre o presente, vai ao passado e volta, sem que haja pistas do que vai ser dito em seguida. Dá sinais de conflitos pelos quais os personagens passam, mas não discorre sobre eles a fundo, ou melhor, abrange integralmente, mas por retomá-los ocasionalmente, a discussão à exaustão é feita com profundidade analisando o todo.

O decorrer dos eventos do presente fica quase oculto diante das lembranças e divagações/teorias do narrador. Por vezes, a felicidade é discutida entre Edgar e Sanderson, pois este está com um livro a ser lançado que tem como tema a felicidade, e é notável que não encontrou a própria. A palavra "satisfação", sendo mais suave, é usada para evitar a palavra com efe (F) em si, que contém significado forte, é carregada de positividade e intensidade que podem não haver no cotidiano de um homem "satisfeito".

Jennie Erdal faz uma dissecação muito boa. Em algum momento do livro, o narrador conta que Sanderson, enquanto organizava sua caixa de moscas de pescaria, o faz um pedido:

"E ele me pediu para imaginar estar sentado num trem lotado de Edimburgo para Londres, com alguém falando bobagens em outra parte do vagão. 'Você conhece o tipo. Um sujeito alto, burro e sem imaginação, absolutamente nada na cabeça que valha a pena dizer, mas decidido a falar de qualquer jeito. Quando chega a Newcastle você já está pronto para estrangulá-lo com as próprias mãos, qualquer coisa que o faça parar de tagarelar. E então, aleluia, ele desce em York.' Sanderson bateu as mãos uma na outra. 'Pois bem, isso é a felicidade.'" (Página 118)

Há demora para que o "tom ausente de azul" seja contextualizado, talvez isso deixe o leitor disperso na primeira metade, ou até se localizar com os fatos, mas é necessário entender que, se este conceito demora para ser revelado, sua importância (subjetiva) ronda toda a história. O "ritmo" do livro só é encontrado após a centésima página, é ali que os personagens deixam de ser esboços para tomarem suas posições na história.

No romance, o pai de Edgar o conta, quando menino, várias histórias com o objetivo de instigar o filho. Dentre elas, está a reflexão de Hume sobre um tom desconhecido de azul que, se oculto de uma escala gradativa com todos os outros tons da mesma cor, seria possível à mente humana imaginar como ele seria. O filósofo escocês abre margens para a observação das lacunas que a mente poderia preencher, sobre o os limites do conhecimento humano, mesmo que não tenha havido vivência para tal conhecimento. Estas considerações estão no livro Investigação sobre o Entendimento Humano.

Sanderson tem como hobby a pescaria. Enquanto manipula moscas secas usadas na pescaria, faz metáforas e comparações entre a vida e seu divertimento, e acaba por ensinar Edgar a pescar também. Quanto a Logan, o teor conferido ao texto, quando direcionado unicamente a ele, é mais analítico, mesmo que beire a melancolia, diferentemente de Sanderson: já que seu personagem é decididamente complexo, a atmosfera é mais triste.

Em uma dada "fuga" do personagem, a narração passa a ser em primeira pessoa, a fim de demonstrar a aflição/urgência contida na passagem. Isso também ocorre em outra ocasião.

O solitário ofício da tradução, e este adjetivo é utilizado pela própria Erdal, e o trabalho com as palavras é discutido por vezes, do ponto de vista da autora e, talvez, da perspectiva dos países centrais do romance. Traz uma visão próxima da realidade acerca da profissão, do mercado editorial, incluindo um parecer sobre os resenhistas, que mais escrevem sobre o estilo do autor original e acabam se esquecendo da importância do tradutor. Também sugere que a harmonia e a ordem sejam ilusões criadas pela linguagem, já que o mundo é aleatório e caótico.

Outro assunto recorrente é a infância. O passado para Edgar é precioso, seu caráter foi moldado a partir de antigos aprendizados, apesar acreditar que só é possível fazer conexões válidas posteriormente, em momentos de maior maturidade. O que lhe ocorre no passado, que é tomado como positivo, molda as atitudes de toda sua vida e, quando negativo, o persegue.

Sartre, Piaget, Aristóteles e vários outros pensadores envolvem O Tom Ausente de Azul e, juntamente com o cuidado da autora ao suavizar os tópicos, o tornam um livro bom, mas é impossível afirmar isso inicialmente e talvez seja essa a ideia: provocar reflexões e usar deste tom para que os leitores se aventurem nele e descubram por si mesmos.

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