10/03/2014

Se Eu Fechar os Olhos Agora - Edney Silvestre

"Se eu fechar os olhos agora, ainda posso sentir o sangue dela grudado nos meus dedos. E era assim: grudava nos meus dedos como tinha grudado nos cabelos louros dela, na testa alta, nas sobrancelhas arqueadas e nos cílios negros, nas pálpebras, na face, no pescoço, nos braços, na blusa branca rasgada e nos botões que não tinham sido arrancados, no sutiã cortado ao meio, no seio direito, na ponta do bico do seio direito."





O incrível -primeiro- romance de Edney Silvestre tem a proposta da sinopse bastante definida: dois meninos, Paulo e Eduardo, encontraram uma mulher morta com parte do corpo mutilada, próximo a um lago em uma região longínqua da pequena cidade onde moravam; comunicaram o ocorrido à polícia, que os tratou como suspeitos, mas logo desconsideraram a hipótese devido à confissão do marido da vítima, um frágil dentista, já idoso, popular entre os moradores; a confissão não fez sentido algum para os meninos que, por notar o descaso geral, recorreram à própria apuração dos fatos, o que os tornou próximos a um morador do asilo local, Ubiratan.

O trecho no início deste texto foi retirado da introdução de "Se eu fechar os olhos agora" e, em 1ª pessoa, apresenta o exato dia em que a mulher foi encontrada, uma terça-feira de abril de 1961. Neste exórdio há a descrição de como foi o dia, desde as reações dos meninos, as maritacas cantando, até a notícia de que Iuri Gagárin havia feito a primeira viagem no espaço, ao redor da Terra, e as implicações que ela teria aos meninos de 12 anos.

As consequências do episódio na vida dos pré-adolescentes os atordoam durante todo o livro, entretanto o diferencial desta introdução é que eles já são adultos e os fatos são relembrados, ainda atordoantes, com cada frase beirando o devaneio.

Passado o primeiro contato, o cenário da história é apresentado como o de uma típica cidade interiorana, em que seus moradores são ingênuos ante as inovações e tecnologias, mas maliciosos às relações entre si. Paulo, por exemplo, tem o pai e o irmão que sofrem de tendências agressivas e expõem o familiar a situações de desamparo em um nível não tão prejudicial, mas ainda ofensivo.

Quando a escrita se refere à fala de Paulo e Eduardo, porém não limita-se à ela, manifestam-se características peculiares. Se um dos meninos se pronuncia, o outro frequentemente completa a frase, o que transparece impaciência, mas principalmente, cumplicidade no que fazem ou pensam. Muito do que é dito também é retificado ou desviado do assunto original, como uma confusão mental ou uma sucessão à própria impaciência, que realça o padrão entrecortado. Há também a inocência frente aos assuntos de maior seriedade, que revelam a infância (pré-adolescência) despreocupada.

A ida do primeiro homem ao espaço e as dúvidas que daí surgiram formam uma passagem que merece releitura, pela graciosidade desta inocência, mas aqui, ela se une a algo mais profundo:


"Se o Japão está vinte e quatro horas na frente da gente, do outro lado da Terra, onde já é amanhã, então o russo passou pelo futuro e voltou ao passado. Mas isso não é possível. Não pode. Ou pode.  Como pode? Se eu for ao futuro posso me encontrar comigo do jeito que eu sou hoje? O menino pálido se perguntou. Ou como eu era hoje? Eu, de hoje, de agora, sendo como sou neste momento, poderei ver como eu serei? O que eu serei?"

A narração em geral (em 3ª pessoa) e o discurso dos personagens versam também acerca de temas como importação na década de 1960, protecionismo, racismo, pobreza, entre outros, em alguns casos partindo da percepção dos próprios meninos, que se imaginam no lugar dos pouco afortunados. Os relatos são iniciados como se o leitor já fosse íntimo do episódio, só revelando do que se trata ao final da sequência e a representação dos momentos de delicadeza é feita evidenciando simultaneamente o que é pouco agradável: a barba por fazer, os cabelo presos em um coque severo, as rugas próximas aos olhos, o cheiro de suor exalando...
O período pré-ditatorial representado em "Se eu fechar os olhos agora" é enrtelaçado com a situação da cidade, social e política, de modo que alianças são feitas entre o prefeito e o presidente com a pretensão de crescimento econômico para o interior e criação de novos empregos. Outra característica das regiões do interior, as famílias "tradicionais" tem vários membros envolvidos com a política. Estes, por sua vez, são figuras impassíveis de punição devido aos benefícios conquistados para a cidade e agregam esta impunidade aos familiares e amigos próximos, com intenções diversas.

Para narrar a melancolia, Edney utiliza a música erudita (Donizetti, Verdi, Rossini) e versos retirados da música popular brasileira (Nelson Gonçalves, Altemar Dutra) que, em meio à solidão e desconsolo, dialogam extraordinariamente bem com o tom frio empregado.


A edição deste livro foi feita pela editora Record. Edney Silvestre também escreveu os romances "A Felicidade É Fácil" (Record) e "Vidas Provisórias" (Intrínseca), ambos bem recebidos pela crítica. Esse último tem o encontro de um dos personagens de "Se Eu Fechar os Olhos Agora" com um dos personagens de "A Felicidade É Fácil".





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